Fado Abrasador
Vivia pacificamente em frente a uma pequena vila na Rua das Ladeiras. Morada modesta, mobília antiga e muretas amareladas. José Gaspar Francia, o caudilho paraguaio, morava logo ao lado e nunca se desatava de sua serpente que estava sempre descamando, assim como as paredes de meu teto.
Vizinhança metediça e intrometida, sobretudo, Dona Rita, ancestral, macérrima e mais venenosa que a serpente do caudilho. Tinham aversão a mim, o mais claro convencionalismo, no entanto motivos não lhes faltavam, carecia de estudos. Apelidaram-me Burro-da-Ladeira, relinchava. Confiava apenas no caudilho, sempre me amparou, éramos quase irmãos, unidos desde tempos imemoriais, ainda mais por ter memória breve. Não podia permanecer por lá eternamente, tinha que mudar, transformar-me por inteiro. José acordava, mas não podia fazê-lo por ser muito apegado àquela vida na Rua das Ladeiras. Tardei, mas parti, nômade, vagante e peregrino.
Sem alento e bronze, caminhava desluzido e só. Nunca desesperançado, não é a toa que nos fins de tarde, quando as lotéricas já quase fechavam, gastava meu único vintém num papel enumerado, não negarei, jamais tive fé que embolsaria o abastado prêmio. Meramente aconteceu, acredite, ganhei. A priori tinha apenas em mente gastar tudo vorazmente, me vingando da sociedade que nunca me acudiu, cada quebrado gasto me lembraria das caçoadas de Dona Rita e das bolachas de Seu Mário. Mas como poderia esquecer-me do anjo benigno encarnado, o caudilho? Fui ao seu encontro após longos e intermináveis anos.
Custava a achá-lo, procurei em todo canto, na Vila não mais estava, foi triste rever aquelas banda empós tantos. Foi Dona Rita, a megera, que me informara com gosto a notícia fatídica. Gaspar Francia havia sido engolido pela víbora, não me refiro a Rita, mas a sua domável cria. Apanhei um punhal que guardava em tempos de covardia, Rita nunca mais fora vista. Gaspar, engolido pela cobra, Rita pelo punhal e eu, pelo ditoso destino.
Ragazzo
“O homem é bom por natureza. É a sociedade que o corrompe.” Jean-Jacques Rousseau
domingo, 30 de maio de 2010
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